Uma análise histórica da
sociedade brasileira desde o final do século XIX até o presente nos ajuda a
entender como as elites nacionais souberam se articular e utilizar de três
grupos sociais como prepostos para se apropriarem do poder do estado: os militares,
o sistema de justiça e os religiosos. Não à toa, toda "família de
bem" sempre almeja ter na prole um militar, um juiz (promotor ou dono de
banca famosa de advogados) [1] e um religioso (preferencialmente das altas
cúpulas das igrejas).
Em artigo anterior, intitulado
"bem-vindos à novíssima república do século XIX", ponderamos que a
proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi um golpe de estado
liderado por um militar, o marechal Deodoro da Fonseca, e apoiado por
latifundiários, maçons, juristas e setores descontentes com a monarquia da
cúpula do catolicismo.
Para justificar o golpe, a
república se instalava a propagar a ideia de um país moderno e independente. Os
republicanos conservadores aderiram ao positivismo, apresentado como a teoria social
capaz de justificar a abissal desigualdade social e a aplicação de políticas
públicas higienistas, segregadoras e excludentes. Afinal, a ciência também
serve para fundamentar a opressão. Até mesmo uma política de embranquecimento
da população foi colocada em prática.
Para os católicos conservadores
se erigia, com a república, um regime político que continuaria a garantir aos
homens de bem seus privilégios. Tudo sob o falso manto da laicidade do Estado.
A união entre a alta cúpula dos
militares, juristas e religiosos católicos, mediada por maçons (que transitavam
e articulavam esses três segmentos sociais à época) era o elo fundacional e o
sustentáculo da república brasileira. Uma república elitista, fundada sem o
povo.
A precedência dos militares era
(e continua sendo) a melhor solução para essa ordem sociopolítica elitista,
paradoxalmente apresentada como moderna e democrática. Espada, lei e cruz
reeditavam a cena do "descobrimento" do país.
No referido artigo, lembrávamos
também que durante todo o século XX o país foi tutelado por militares, sempre
com o apoio do sistema de justiça e das elites religiosas conservadoras. Depois
do golpe da proclamação da república, os militares voltaram ao poder em 1930,
dividindo-o com Getúlio Vargas.
Na sequência, ficaram mais
poderosos aderindo ao golpe do Estado Novo, com Vargas; tiraram Vargas de cena
em 1946, num golpe encomendado pelos Estados Unidos. Em 1961 ameaçaram virar a
mesa se o vice-presidente João Goulart assumisse o lugar de Jânio e três anos
depois, mais uma vez, sob a batuta do "império do norte", tiraram
João Goulart do Palácio do Planalto, com o apoio decisivo de religiosos (as
famosas marchas de "Deus pela Família", lideradas por um clérigo
estadunidense) e a conivência pacífica dos tribunais, dando início à segunda
ditadura militar que durou 21 anos.
Definindo a sina da república
conservadora e excludente tupiniquim, em todos esses momentos os segmentos de
elite (empresários, latifundiários, banqueiros, donos da mídia e setores
conservadores da classe média) apoiaram os sustentáculos operacionais do modelo
de governança pela força: os militares.
Nesses quase 130 anos de
república não tivemos sequer meio século de democracia. E, mesmo quando se
falava em democracia era preciso adjetivar o termo: democracia de baixa
intensidade.
Observemos que o tripé
classista que dominou grande parte da história republicana brasileira
(militares, juízes/promotores e clérigos) tem em comum vários elementos. A
(boa) ida das elites militares, judiciárias e clericais é fruto de uma ordem
social injusta e desigual, baseada, entre outras, na disciplina e na rigidez
hierárquicas, com regras de conduta espartana. Esse modo de vida faz com que
esses setores se coloquem como uma espécie de tutores da sociedade. Sempre se
postam como os melhores, mais preparados, mais puros e mais santos para
governarem e/ou imporem suas regras de conduta à sociedade.
Registre-se, por questão de
justiça, que sempre existiram grupos minoritários de militares, magistrados e
religiosos[2] que não se conformaram aos interesses das elites, nas suas
instituições.
Um interregno desse arranjo
elitista aconteceu no chamado "processo de redemocratização" a partir
dos anos de 1980. No plano religioso, entre outros fatores, a teologia da
libertação provocou um engajamento sociopolítico dos católicos, ao mesmo tempo
que ocorria uma nova configuração religiosa no país, com o adensamento dos
evangélicos. Na esfera social, os novos arranjos advindos com a Constituição de
1988 desarticulou, momentaneamente, o protagonismo da caserna e o judiciário,
por um lapso temporal, passou a ser uma espécie de guardião dessa nova ordem
que apontava para uma sociedade menos elitista e oligárquica.
Porém, as altas cúpulas de
militares, juízes e religiosos, por um bom tempo congregados na maçonaria[3],
nunca perderam o protagonismo. Enquanto a sociedade dormia em berço esplêndido
atribuindo poderes mágicos à "Constituição Cidadã" e os setores
progressistas se acomodavam nos pactos entre elites e na tibieza à consecução de
reformas estruturais (quando no poder), as Forças Armadas estrategicamente
foram reassumindo o seu protagonismo. Por seu turno, as castas do judiciário
(incluso o Ministério Público) foram vitaminadas com a vã promessa de
"guardiãs da Constituição" e começaram a tutelar os demais poderes.
Paradoxalmente, tudo acontecendo e sendo abençoado por governos autointitulados
liberal-democráticos e de esquerda.
Por fim, o enfraquecimento do
catolicismo progressista e da cúpula da Igreja Católica e a ação deliberada dos
neopentecostais evangélicos na disputa pelo poder (do Estado)[4] criou as
condições suficientes para a rearticulação e revanche dos segmentos fundadores
da república que, como bons estrategistas, contaram como os históricos
apoiadores da velha ordem elitista: no plano internacional, os Estados Unidos
(que nem precisaram aportar navios nas costas brasileiras; bastou treinar
juízes e formadores de opinião na construção de uma narrativa ultraliberal e
autoritária). No plano doméstico, os empresários, latifundiários, banqueiros,
donos da mídia e os setores conservadores da classe média.
O golpe de 2016 e a consequente
eleição do capitão Bolsonaro, em 2018 – superando o número de castrenses no
centro do poder em relação ao governo ditatorial que se instalou em 1964 -, mostram
que o velho arranjo republicano à brasileira continua valendo: militares,
judiciário e a nova configuração religiosa brasileira protagonizada por uma
espécie de cristianismo dos trópicos que congrega poderosos grupos evangélicos
e de católicos conservadores: os neopentecostais da teologia da prosperidade,
serva fiel do capitalismo individualista e de um modelo de sociedade no qual
Deus abençoa somente aqueles que têm dinheiro e boa vida. Aos demais, os
renegados, a sina da miséria, da exclusão social, da penúria ou, na melhor das
hipóteses, da tutela da caridade dos "eleitos".
Em todos os momentos da velha e
da próxima ordem republicana tupiniquim os discursos de sempre, baseados na
luta do bem contra o mal: lei e ordem (armas e sistema de justiça) para
enfrentar o fantasma do comunismo; pela moral, bons costumes e família
tradicional dos bons cristãos; contra as minorias e a perigosa ideia de justiça
social, etc. O mesmo moralismo; as mesmas justificativas à intervenção
institucional a fórceps; os mesmos atores; o mesmo desprezo à ordem
constitucional e democrática.
Por fim, é importante registrar
que a persistência do conservadorismo político-social-religioso brasileiro não
é mérito somente dos setores elitistas da sociedade. É preciso reconhecer a incompetência
dos setores progressistas que nunca conseguiram romper com a velha ordem
oligárquica.
Se teremos, novamente, uma
república tutelada por militares, respaldada por juízes e promotores e
abençoada por religiosos, agora em formato mais dissimulado e violento - haja
vista seu contorno ultraliberal -, lembremos que essa história não tem nada de
muito novo. É tudo muito velho.
[1] Além dos
"doutores" advogados, os "doutores" médicos também entram
nesse rol.
[2] Muitos clérigos aderiram às
Comunidades Eclesiais de Base (CEB's) da Igreja Católica - que tiveram grande
protagonismo na cena sociopolítica brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Houve
juízes que foram expurgados de tribunais durante a ditadura militar e militares
que foram expulsos de suas corporações por não aceitaram práticas autoritárias,
antinacionais e antidemocráticas. Em todas essas instituições (com mais ou
menos poder a depender de várias circunstâncias), sempre há membros
comprometidos com uma ordem social justa, igualitária e democrática.
[3] A proibição pela Igreja
Católica da participação do clero na maçonaria, principalmente a partir do
final do Império enfraqueceu momentaneamente essa organização. Como se sabe,
muitas lojas maçônicas no Brasil foram fundadas no século XIX por clérigos
católicos que queriam ambientes secretos para discutir suas ideologias
liberais. Atualmente, os maçons congregam muitos dos líderes religiosos do
neopentecostalismo, além de militares, juízes, promotores, empresários,
latifundiários, etc.
[4] Registre-se que os
primeiros protestantes (Luteranos, Anglicanos, Batistas, Metodistas,
Calvinistas) que chegaram ao Brasil a partir do final do século XIX, vindos do
sul dos Estados Unidos e marcados pela escravidão, traziam uma religião
socialmente engajada. A grande guinada dos protestantes para o conservadorismo
elitista se deu com a criação do neopentecostalismo à brasileira, resultado da
transformação e readaptação das igrejas pentecostais, que veio à tona no final
da década de 1970, e que hoje se faz presente nas mais diversas áreas do
contexto nacional, da mídia ao cenário político, partidário e eleitoral.
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